Fátima Pérola Neggra: uma mulher simples, mas não uma simples mulher
O ano de 2018 certamente foi especial e marcante para Fátima Aparecida Santos de Souza, a cabo Fátima Pérola Neggra. A mulher, mãe de cinco filhos, policial militar, então com 50 anos de idade – sendo 20 deles de serviços prestados à corporação – era escolhida pelo partido DC (Democracia Cristã) como candidata a vice-governadora, na chapa encabeçada pelo major Costa e Silva. Ao fim daquela campanha, a dupla ficou distante de qualquer chance de eleição. Mas isso não significa que o resultado obtido foi inexpressivo. Muito pelo contrário. Com menos recursos em comparação às siglas tradicionais, o major Adriano e a cabo Fátima obtiveram cerca de 750 mil votos em todo o Estado, o que lhes garantiu o quinto lugar na corrida eleitoral e o reconhecimento dos eleitores e dos adversários.
Esse, porém, não é o fim da história desta mulher que sempre precisou batalhar ao longo de sua vida. É apenas um dos capítulos mais recentes de uma trajetória que teve e ainda terá diversos episódios de SUCESSO!
Natural da pequena Iporã, cidade no noroeste do Paraná e que atualmente tem cerca de 13 mil habitantes, Fátima é a mais velha dos dois filhos do lavrador Julio dos Santos e da dona de casa Maria José dos Santos, conhecida por todos como Lia. Seu irmão, Francisco, é um ano e meio mais novo.
Da infância, a hoje policial militar guarda as recordações comuns às crianças, de brincadeiras e das idas à escola, mas também das constantes mudanças de sua família. De Iporã, Fátima e sua família foram para o Paraguai, onde ficaram dois anos antes de retornar ao Paraná. No Estado, a última cidade onde residiram foi Apucarana. De lá, os quatro se mudaram para Itumbiara, município goiano próximo a divisa com Minas Gerais, antes de chegarem a Mauá, em 20 de janeiro de 1981, onde parte da família de sua mãe já morava. A vida por aqui, entretanto, não era fácil.
“Ficamos morando aqui de aluguel por um tempo. Meu pai tinha dificuldades de conseguir emprego e trabalhava como camelô, vendendo seu limãozinho para sustentar a gente”, recordou-se Fátima.
As dificuldades daquele período, contudo, aumentariam pouco tempo depois, com a separação de seus pais. O ex-lavrador Julio decidiu voltar para Itumbiara – onde faleceria alguns anos depois – enquanto a dona de casa Lia permaneceu em Mauá criando seus dois filhos. Na época, ela conseguiu um emprego de copeira, para sustentar os filhos, e decidiu deixar a Vila Tavares, onde moravam de aluguel, para construir uma casa simples no Jardim Oratório, após vender grande parte de seus objetos de valor na expectativa de juntar o dinheiro necessário para a construção. Foi de sua mãe, inclusive, que Fátima disse ter herdado características marcantes como a garra e a fé.
Na nova casa, Fátima passou parte da adolescência e o início da fase adulta. E foi lá também que, aos 19 anos, ela deu a luz a sua primeira filha, Paloma, fruto do relacionamento com o policial militar Elias Guedes. Naquela época, Fátima trabalhava na metalúrgica Brosol, em Ribeirão Pires. Antes, porém, ela já havia sido funcionária da tecelagem Marabá, no bairro do Ipiranga, em São Paulo. E foi lá que ela conheceu seu futuro marido e pai de seus quatro primeiros filhos, que fazia o policiamento local.
Pouco tempo depois, ela deixou a tecelagem Marabá após um episódio em que saiu em defesa de suas colegas de trabalho. “Quando eu trabalhava na tecelagem, houve uma ocasião em que nossos chefes disseram que ficaríamos de folga no Carnaval, mas que nosso pagamento só cairia depois das festas. Não concordei, porque não adiantava pegar a folga naqueles dias sem dinheiro para aproveitar. Discuti com eles, mas não teve jeito. Então, fui a cada seção e perguntei se os funcionários queriam salário. Daí, falei que tal hora, todo mundo iria parar, porque se não pressionássemos eles não pagariam. Fizemos essa paralisação temporária, avisei ao chefe da seção, e quando vi que todas estavam paradas, fui ao escritório cobrar o pagamento. Eles continuavam irredutíveis, mas quando viram o prejuízo que teriam, o dono mandou a secretária de seção em seção para fazer o pagamento”, conta Fátima aos risos. Sua rebeldia, contudo, lhe rendeu uma demissão logo após o retorno às atividades. Ainda assim, o encarregado de sua área lhe deu cartas de recomendação para outras empresas do ramo.
Entretanto, Fátima optou por tentar uma colocação na Brosol. Foi durante os exames médicos para admissão, contudo, que ela descobriu estar grávida. Precisando do emprego e com a ajuda de sua chefe de seção, Pérola Neggra escondeu a gravidez e foi efetivada após o período de experiência. Na metalúrgica, ela permaneceu por três anos e meio, chegando a ganhar uma eleição da CIPA (Comissão Interna de Prevenção de Acidentes), como a segunda mais votada.
Na mesma época, Fátima se casou, indo morar na zona leste de São Paulo. A partir dali, a vida dela se transformou, pois ela deixou o trabalho e interrompeu os estudos para cuidar da casa e dos filhos. Além de Paloma, vieram na sequência Patrick, Emanuel e Elias Filho. Pouco depois, o casal conseguiu construir sua primeira casa própria, também na zona leste.
Os anos se passaram e, mesmo achando gratificante sua atuação como mãe e esposa, Fátima começou a sentir falta de participar de atividades que pudessem lhe estimular. Foi então que sua mãe a incentivou a retomar os estudos, por meio do EJA (Educação de Jovens e Adultos). Na época, Lia estava participando do programa na EMEJA Clarice Lispector, em Mauá. Apesar dos afazeres domésticos, Fátima adorou a ideia e juntou-se a mãe nos estudos, mesmo precisando fazer uma pequena “viagem”, muitas vezes acompanhada dos filhos, para assistir às aulas. Nesse período, a futura policial militar redescobriu o amor pela literatura e chegou a ficar em segundo lugar em um concurso de poesia realizado na escola com o texto Sociedade Anônima, que começou a ser escrito enquanto ela ainda trabalhava na tecelagem Marabá, em meio às mudanças políticas que o país atravessava.
A retomada dos estudos reanimou Fátima de tal forma que, em 1997, ela decidiu prestar concurso para entrar na Polícia Militar do Estado de São Paulo. Foram dez meses de um intenso processo seletivo que coincidiu com um dos momentos mais difíceis de sua vida. Em meio ao decurso de seleção, o marido acabou sendo baleado ao reagir a uma tentativa de assalto. O policial ficou oito dias na UTI, em seguida a uma delicada cirurgia, no mesmo momento em que Fátima precisava fazer o teste psicológico, um dos últimos passos antes de ser admitida na corporação. “Quarenta mulheres sendo avaliadas numa tarde e de repente a psicóloga me pergunta se eu estava tensa. Dei aquela respirada profunda e pensei que ela iria me reprovar. Falei sobre a situação do meu marido e disse que o quanto antes ela me liberasse seria melhor. Ele pediu para eu aguardar na sala ao lado, por 10 minutos. Depois, chegou com três pilhas de papel. No primeiro, o maior, estavam as reprovadas. No segundo, estavam as que ficaram em dúvida e precisariam refazer o teste. E no terceiro, com oito, estavam as aprovadas. Ela deu as boas vindas à policia militar e avisou que entrariam em contato. Saí, peguei o ônibus para o Hospital Geral de São Mateus e, sentada lá no fundo, caí em prantos, porque achei que seria reprovada. Chegando no hospital, recebi outra boa notícia, pois ele tinha deixado a UTI”, lembrou. Pouco tempo depois, Fátima se formou e entrou, de fato, para a corporação.
Dentro da Polícia Militar, Fátima já chegou se destacando naquilo que era craque: a escrita. Apesar das dificuldades enfrentadas logo de início devido a rotina de mãe e esposa e ao curso inicial da corporação, ela decidiu participar de um novo concurso literário exclusivo para policiais militares com uma temática que misturava a implantação da polícia comunitária com a filosofia da não violência pregada pelo indiano Mahatma Gandhi. O resultado? Novamente ela ficou em segundo lugar, desta vez em uma premiação que abrangia todo o Estado. O concurso foi tema de matéria na Veja.
Em seguida, a já policial militar foi alocada no 4º Batalhão de Polícia Feminino da Polícia Militar do Estado, ficando por lá até o final de 1999, quando os batalhões femininos foram extintos. Fátima, porém, acabou fazendo parte da história, ao integrar um dos primeiros batalhões mistos, criados no início dos anos 2000. Na oportunidade, ela foi alocada no 30º batalhão, em Mauá, o primeiro a ser comandado por uma mulher, a coronel Fátima Ramos Dutra. Pérola Neggra ficou responsável pelo departamento de comunicação social.
Na nova função, Fátima voltou a se destacar com um novo texto de sua autoria chamado “Meu Nome é Mulher”. Considerado pela própria autora um de seus carros chefes, o poema foi escrito por ocasião das comemorações do Dia Internacional da Mulher, em 2000, a pedido da coronel Fátima, que faria uma palestra no Rotary Clube de Mauá. Posteriormente, o texto foi adaptado para as palestras motivacionais que ela ministra atualmente.
Nos anos seguintes, Fátima Pérola Neggra entrou no PROERD (Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência), onde ela é instrutora até hoje. A atuação no programa é um de seus grandes orgulhos, pois segundo a policial militar, ela pôde ajudar na formação de muitos jovens da cidade, destacando que muitos de seus alunos cresceram e se tornaram bons profissionais e cidadãos. Aliás, um dos muitos alunos de Fátima trabalha com ela atualmente no pelotão de policiamento, o soldado Alex. “Eu sou mãe, então lidava com eles como se fossem com meus filhos. E faz toda a diferença na vida deles. O crucial do PROERD é desenvolver a autorresponsabilidade de suas escolhas”, comentou.
Nos últimos anos, a vida de Fátima mudou bastante. Tanto profissionalmente quanto pessoalmente. Em âmbito profissional, ela segue na corporação, ainda atua nas ruas e seu trabalho no PROERD continua firme e forte. Mas ela também divide o tempo de trabalho com outras funções. Sua carreira literária só cresceu, principalmente após ter sido descoberta e trazida ao público por Edson Bueno de Camargo, escritor regional. Com esse destaque, ela foi eleita - via voto popular - a vice-presidente do Conselho Municipal de Cultura de Mauá, em 2017. Antes disso, todavia, Fátima já havia sido homenageada com o prêmio “Mulher de Destaque” em 2006, por seu trabalho. Além disso, ela se tornou palestrante motivacional, sendo bastante requisitada a falar aos mais diversos públicos. Isso sem contar a carreira política que deverá seguir adiante e que também já lhe rendeu o prêmio “Destaque do Ano” na cena política, em 2018.
Já no campo pessoal, as mudanças foram ainda maiores, entre boas notícias e percalços desgastantes. Em 2007, ela e o marido se divorciaram. Os dois, porém, mantém um relacionamento de muito respeito. Ainda assim, a separação causou um impacto na família, com cada um de seus filhos reagindo de uma maneira ao término do casamento. Dois deles chegaram a fazer escolhas erradas. Hoje, contudo, ambos retomaram suas vidas e são motivos de orgulho para a mãe coruja. Além disso, três anos depois do divórcio, Fátima voltou a ser mãe, aos 42 anos, com o nascimento da pequena Heloisa, que está prestes a completar dez anos.
Mais recentemente, em 2019, foi a vez de a própria Fátima enfrentar uma depressão, que a atingiu em cheio. O motivo foi a perda de uma de suas melhores amigas, a sargento Tais Melloni, que faleceu durante uma ação policial. Neste período, ela também ajudava seu filho Emanuel a combater o mesmo problema, algo que tem lhe inspirado a seguir adiante e auxiliar outras pessoas que passem pela mesma situação. Todavia, essa mãe, avó, filha, policial, poetisa, instrutora do PROERD, palestrante e candidata a vice-governadora superou os obstáculos que lhe foram impostos e deu a volta por cima, para traçar planos visando os próximos anos. Entre seus objetivos estão a criação de uma marca de produtos femininos e, é claro, a publicação de um livro com seus poemas e outro com sua história.
Com tantas batalhas e conquistas, percalços e triunfos, Fátima Aparecida Santos de Souza, a Fátima Pérola Neggra, fez, aconteceu e fará ainda mais se depender de sua força de vontade e obstinação. Deve ser por isso que ela se define como “uma mulher simples, mas não uma simples mulher”. E não há como duvidar disso.
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